Autor: Jardel Cassimiro, Pesquisador científico e acadêmico em biomedicina
A furosemida, um potente diurético de alça, é amplamente utilizada no manejo de estados edematosos e de hipertensão. Esta revisão oferece uma análise detalhada do mecanismo de ação da furosemida, destacando sua prevenção do cotransportador (NKCC2) na alçada ascendente de Henle. São considerados os benefícios terapêuticos em condições como insuficiência cardíaca (aguda e crônica), insuficiência renal (lesão renal aguda e doença renal crônica), cirrose hepática e síndrome nefrótica, bem como seu papel como adjuvante no manejo da hipertensão. Uma revisão detalhada dos principais efeitos adversos – incluindo desequilíbrios eletrolíticos, desidratação, hipotensão, ototoxicidade, alcalose metabólica e hiperuricemia – e as interações medicamentosas clinicamente relevantes. Além disso, são abordadas as contraindicações e apresentadas as descobertas de ensaios clínicos e diretrizes atuais, enfatizando a importância do tratamento individualizado e do monitoramento contínuo.
A furosemida, derivada do ácido sulfamoil-antranílico, tem sido utilizada desde a década de 1960 como um diurético de aumento de alta potência. Sua eficácia no manejo de sobrecarga de fluidos e hipertensão, tanto em contextos agudos quanto atuais, mantém como um pilar terapêutico, mesmo com o surgimento de novos agentes. A excelente resposta clínica, aliada ao baixo custo e às especificidades de uso, torna-a indispensável em diversas situações clínicas. Contudo, os riscos associados – especialmente os desequilíbrios eletrolíticos e a ototoxicidade – requerem uma abordagem cautelosa e monitorada. Este artigo revisa, de forma abrangente, o mecanismo de ação, as aplicações terapêuticas, os efeitos adversos e as interações medicamentosas da furosemida, baseando-se em evidências recentes e diretrizes internacionais.
Esta revisão narrativa foi realizada por meio de uma busca sistemática nas bases de dados PubMed, Scopus e Web of Science. Os termos utilizados incluíram “furosemida”, “diurético de alça”, “edema”, “hipertensão”, “insuficiência cardíaca”, “insuficiência renal”, “doença renal crônica”, “cirrose”, “síndrome nefrótica”, “desequilíbrio eletrolítico”, “ototoxicidade” e “interações medicamentosas”. Foram estudos selecionados publicados em inglês e português entre 2000 e 2024, com ênfase em ensaios clínicos, revisões sistemáticas, meta-análises e diretrizes de organizações como a American Heart Association, a European Society of Cardiology e o KDIGO. A qualidade metodológica e a relevância dos achados foram criteriosamente avaliadas para a inclusão dos estudos.
A furosemida exerce seu efeito diurético principalmente através da prevenção do cotransportador (NKCC2, ou SLC12A1), localizado na membrana apical das células epiteliais do ramo ascendente espesso da alça de Henle. Esse segmento é responsável por reabsorver cerca de 25-30% do som filtrado. Os principais mecanismos incluem:
Inibição do NKCC2: A furosemida se liga com alta camada superficial ao sítio de cloreto do NKCC2, bloqueando a translocação de sódio, potássio e cloreto do lúmen tubular para o interior das células.
Redução da Reabsorção Iônica: A prevenção do NKCC2 diminui o gradiente osmótico medular, essencial para a reabsorção passiva de água nos dutos coletores.
Aumento de Diurese e Natriurese: A maior disponibilidade de íons e água no néfron distal resulta em diurese e natriurese intensificadas.
Efeitos Secundários: Além da excreção aumentada de cálcio e magnésio – decorrente da redução do potencial luminal positivo – a furosemida pode estimular a síntese de prostaglandinas renais, contribuindo para seus efeitos vasodilatadores. A diminuição da volemia induz ainda a ativação do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona (SRAA).
A furosemida encontra aplicação em diversas condições clínicas, especialmente aquelas relacionadas à sobrecarga de fluidos e à hipertensão.
4.1 Edema
4.1.1 Insuficiência Cardíaca
Na insuficiência cardíaca, tanto aguda descompensada (ICAD) quanto crônica (ICC), a furosemida é fundamental para reduzir a congestão pulmonar e o edema periférico, proporcionando alívio sintomático e melhora na função hemodinâmica.
4.1.2 Insuficiência Renal
Em pacientes com doença renal crônica (DRC) ou lesão renal aguda (LRA), a furosemida é empregada para controlar a sobrecarga hídrica. Na RDC avançada, doses elevadas podem ser necessárias, exigindo monitoramento rigoroso da função renal e dos eletrólitos.
4.1.3 Cirrose Hepática
Utilizada frequentemente em associação com espironolactona, a furosemida ajuda no manejo da ascite e do edema periférico resultante da cirrose hepática.
4.1.4 Síndrome Nefrótica
Na síndrome nefrótica, a redução do edema é alcançada com a administração de furosemida, embora o tratamento da causa subjacente da proteinúria seja indispensável.
4.2 Hipertensão
Embora a furosemida não seja considerada a primeira escolha no tratamento isolado da hipertensão, ela pode atuar como adjuvante em pacientes com hipertensão resistente, em situações de sobrecarga de fluidos ou durante crises hipertensivas relacionadas a edema pulmonar.
Riscos e Efeitos Adversos
O uso da furosemida, apesar de sua eficácia, está associado a diversos efeitos adversos que desativam o monitoramento clínico e laboratorial:
5.1 Desequilíbrios Eletrolíticos
Hipocalemia: O efeito diurético aumenta a excreção de potássio, podendo levar a arritmias e fraqueza muscular, sendo frequentemente necessária a reposição ou a associação com diuréticos poupadores de potássio.
Hiponatremia: Uma perda acentuada de som pode provocar complicações neurológicas, especialmente em pacientes vulneráveis.
Hipomagnesemia: A depleção de magnésio pode agravar a hipocalemia e aumentar o risco de arritmias.
Hipocalcemia: Embora menos comum, pode ocorrer excreção aumentada de cálcio, principalmente em indivíduos com condições predisponentes.
5.2 Desidratação e Hipotensão
Um diurese excessivo pode reduzir o volume intravascular, causando desidratação, hipotensão ortostática e risco aumentado de quedas, especialmente em idosos.
5.3 Ototoxicidade
Doses elevadas ou administração rápida de furosemida, principalmente em combinação com aminoglicosídeos, podem causar ototoxicidade – manifestada por zumbido, perda auditiva ou vertigem –, que geralmente é reversível, embora possa ser permanente em casos raros.
5.4 Alcalose Metabólica
A perda excessiva de cloreto em relação ao bicarbonato pode resultar em alcalose metabólica.
5.5 Hiperuricemia
A furosemida pode elevar os níveis séricos de ácido úrico, predispondo os pacientes à gota.
5.6 Insuficiência Renal
Em situações de hipovolemia ou em pacientes com função renal comprometida, o uso da furosemida pode agravar a insuficiência renal.
Interações Medicamentosas
A furosemida interage com diversos medicamentos, o que pode modificar sua eficácia ou aumentar o risco de efeitos adversos:
Anti-inflamatórios Não Esteroides (AINEs): Inibem a síntese de prostaglandinas renais, diminuindo o efeito diurético e podendo agravar a função renal.
Antibióticos Aminoglicosídeos: A combinação pode aumentar o risco de ototoxicidade, sendo recomendada cautela na coadministração.
Digoxina: A hipocalemia causada pela furosemida potencializa a toxicidade da digoxina, aumentando o risco de arritmias.
Lítio: A diminuição da depuração do lítio pela furosemida pode levar à sua toxicidade, exigindo monitoramento dos níveis séricos.
Agentes Anti-hipertensivos: A furosemida pode potencializar os efeitos hipotensores de outros medicamentos, como inibidores da ECA, BRAs e betabloqueadores, necessitando de ajustes de dose.
Corticosteroides e Antidiabéticos: Podem aumentar o risco de hipocalemia e diminuir a tolerância à glicose, respectivamente.
Contraindicações
A administração de furosemida é contraindicada nos seguintes casos:
Anúria: Pacientes incapazes de produzir urina não se beneficiam do seu efeito diurético e podem apresentar toxicidade aumentada.
Hipersensibilidade: Histórico de alergia à furosemida ou a outras complicações sulfonamídicas.
Coma ou Pré-coma Hepático: O uso pode agravar a encefalopatia hepática em pacientes com doença hepática grave.
Depleção Eletrolítica Grave: Correção prévia de hipocalemia, hiponatremia ou desidratação é necessária antes do início da terapia.
Estudos Clínicos e Diretrizes
Diversos ensaios clínicos e revisões sistemáticas confirmaram a eficácia e a segurança da furosemida em múltiplos cenários clínicos:
DOSE Trial (Diuretic Optimization Strategies Evaluation): Este estudo comparou diferentes estratégias de dosagem (dose alta versus dose baixa e bolus versus infusão contínua) em pacientes com insuficiência cardíaca aguda descompensada, demonstrando que, embora o intervalo sintomático seja semelhante, doses elevadas podem estar associadas a uma piora transitória da função renal.
Revisões Cochrane: Evidenciam a importância dos diuréticos de gestão no manejo da insuficiência cardíaca, enfatizando a necessidade de individualização da terapia e monitoramento dos efeitos adversos.
Diretrizes de Insuficiência Cardíaca (AHA/ACC/HFSA e ESC): Recomendações internacionais ressaltam o papel da furosemida no controle da sobrecarga de fluidos em pacientes com insuficiência cardíaca.
Diretrizes KDIGO: Orientam o uso de diuréticos em pacientes com doença renal crônica, enfatizando o monitoramento da função renal e dos eletrólitos.
Discussão
A furosemida mantém-se como um componente essencial na terapia de condições associadas à sobrecarga de fluidos e hipertensão. Sua ação rápida e eficaz na promoção da diurese torna-a indispensável em contextos agudos – como na insuficiência cardíaca descompensada – e em tratamentos específicos, onde o controle da volemia é crucial. Entretanto, o manejo clínico da furosemida requer uma abordagem individualizada, com atenção especial à prevenção e correção dos desequilíbrios eletrolíticos, à monitorização da função renal e à cautela nas interações medicamentosas. Estudos recentes sugerem que a otimização das estratégias de dosagem, seja por infusão contínua ou administração intermitente, pode melhorar a eficácia terapêutica e reduzir os riscos associados. Investigações futuras devem explorar preditores de resposta e métodos para minimizar os efeitos adversos, especialmente em ambientes de alto risco, como os idosos e pacientes com RDC avançados.
Conclusão
A furosemida é um diurético de alça robusta e eficaz, com um papel prescrito no manejo do edema e na redução da hipertensão associada à sobrecarga de fluidos. Seu mecanismo de ação, centrado na inibição do cotransportador NKCC2, permite um controle eficaz da diurese e da natriurese. Contudo, a potencial ocorrência de efeitos adversos – especialmente desequilíbrios eletrolíticos, ototoxicidade e comprometimento da função renal – reforça a necessidade de tratamento individualizado e monitoramento contínuo. A integração das evidências atuais e o aprimoramento das estratégias terapêuticas são fundamentais para maximizar os benefícios clínicos da furosemida e minimizar seus riscos.
Todo medicamento deve ser utilizado sob orientação médica; consulte seu médico antes de usá-lo.