Uma análise aprofundada sobre poluição, mobilidade e desigualdade com Paulo Saldiva
Por Jardel Cassimiro
Em entrevista exclusiva ao IHU On-Line, Paulo Saldiva, pesquisador líder em saúde ambiental na Universidade de São Paulo (USP), revela a intrincada rede que conecta poluição, mobilidade urbana e desigualdade sistêmica no Brasil. Apelidada de “pandemia silenciosa”, a poluição do ar ceifa milhares de vidas anualmente, mas continua marginalizada em debates políticos dominados por interesses econômicos. Os insights de Saldiva expõem como o racismo ambiental, o planejamento urbano falho e a governança fragmentada perpetuam uma crise de saúde pública.
Racismo ambiental: um flagelo global com rostos locais
Saldiva apresenta o “racismo ambiental” como uma questão estrutural: corporações e políticas multinacionais impõem deliberadamente padrões ambientais mais baixos em regiões marginalizadas. “Quando as empresas vendem produtos inferiores — como combustíveis mais sujos ou veículos ultrapassados — para áreas mais pobres, elas tratam vidas como dispensáveis”, ele afirma. Essa prática reflete tendências globais onde a poluição se torna um “mapa da pobreza”, afetando desproporcionalmente a África, a América Latina e a Ásia. No Brasil, as periferias empobrecidas suportam deslocamentos mais longos, escassos espaços verdes e maior exposição a poluentes, criando “ilhas de vulnerabilidade” onde a saúde é trocada por crescimento econômico.
Conflitos econômicos e culturais: o ciclo vicioso
Barreiras econômicas: Saldiva destaca políticas paradoxais: licenciar 2.000 novos veículos diariamente em São Paulo não exige estudos de impacto ambiental, enquanto a expansão dos sistemas de metrô enfrenta obstáculos burocráticos. “Nós incentivamos o problema e dificultamos as soluções”, ele observa. Subsídios para propriedade de carros (por exemplo, isenções fiscais) contrastam com o transporte público subfinanciado, incorporando a dependência de veículos particulares.
Mudanças culturais: Uma cultura centrada no carro prospera devido a décadas de negligência. “Os brasileiros defendem seus carros porque o transporte público é degradante”, explica Saldiva. No entanto, cidades como Berlim demonstram que a infraestrutura eficiente de trânsito e ciclismo pode mudar comportamentos — se priorizada.
Impactos na saúde: o pedágio invisível
As consequências da poluição para a saúde são graves:
4.000 mortes anuais em São Paulo estão relacionadas à poluição do ar.
R$ 30 bilhões/ano perdidos em acidentes de trânsito e custos de saúde relacionados.
O deslocamento médio diário de 2h40min corrói a qualidade de vida, o sono e os laços comunitários.
Apesar das evidências desde a década de 1970, as autoridades de saúde continuam excluídas de decisões críticas sobre padrões de combustível ou planejamento urbano. “A saúde não está na mesa quando os ministérios discutem subsídios ao diesel ou impostos sobre veículos”, lamenta Saldiva.
Soluções existem, mas quem agirá?
Saldiva ressalta que soluções técnicas estão ao nosso alcance:
Energia limpa: matriz diversificada do Brasil (etanol, renováveis) pode reduzir emissões.
Mobilidade Inteligente: Sistemas de Ônibus Rápido (BRT), inspirados no sucesso de Curitiba, podem transformar cidades.
Recuperação urbana: zonas de pedestres, redes de ciclismo e espaços verdes promovem saúde e equidade.
No entanto, falta coragem política. “Uma taxa de congestionamento poderia financiar melhorias no trânsito, mas preferimos pagar gigantes do estacionamento do que confiar em políticos”, ele critica.
O paradoxo do desenvolvimento
O modelo de crescimento do Brasil, priorizando montadoras e combustíveis fósseis (por exemplo, petróleo pré-sal), repete erros do passado. “Nós desmantelamos ferrovias para caminhões, e agora estamos presos”, lembra Saldiva. O mito de que a poluição é uma troca de desenvolvimento persiste, apesar da prova global de que a sustentabilidade impulsiona a prosperidade.
Chamada à Ação: Saúde no Centro
Saldiva pede a integração da saúde em todas as políticas: “Todo projeto de infraestrutura deve pesar os custos da saúde. Dados de mortalidade devem orientar padrões de combustível, investimentos em trânsito e leis de zoneamento.” Para cidades como São Paulo, isso significa repensar a expansão urbana, priorizar a equidade no trânsito e confrontar o racismo ambiental.
Conclusão
Como Saldiva alerta, “Sem mudança sistêmica, os pobres continuarão pagando com suas vidas”. O desafio não é tecnológico, é político. Para o Brasil respirar melhor, a saúde não pode mais ser um dano colateral na busca pelo progresso.
Paulo Saldiva é professor da Faculdade de Medicina da USP, coordenando pesquisas sobre riscos ambientais à saúde. Seu trabalho faz a ponte entre patologia, planejamento urbano e política pública, defendendo cidades que priorizam as pessoas em detrimento do lucro.